Respondendo a um questionamento que me foi feito por e-mail, a propósito das raízes remotas do Ministério Público, eu tive ocasião de escrever ontem o seguinte:
a) os antecedentes remotos de um instituto servem para ilustrar uma análise científica, mas pouco têm a ver com a realidade atual do nosso Direito. Assim, p. ex., embora seja possível buscar há algumas centenas de anos alguns antecedentes rudimentares para as ações de classe ou para as ações coletivas, na verdade, o processo coletivo como existe hoje entre nós tem origem bem mais recente (v. meu livro A defesa dos interesses difusos em juízo, 24ª ed., Saraiva, 2010). Da mesma forma, uma coisa é procurar os antecedentes remotos do Ministério Público, e outra é identificar quais os órgãos que, nos tempos modernos, deram origem efetiva à instituição que hoje exerce entre nós as funções do Ministério Público (v. meu livro Regime jurídico do Ministério Público, 6ª ed., Saraiva, 2007);
b) o surgimento do Ministério Público moderno, a meu ver, não se deu, como grande parte da doutrina diz, na França, daí se irradiando para Portugal, Itália, Espanha, Brasil etc. A meu ver - e procurei desenvolver essa idéia no meu livro Regime jurídico do Ministério Público -, os procuradores do rei surgiram contemporaneamente na França, em Portugal e nos demais países de tradição semelhante fundada no Direito Romano, ainda que na França eles tenham ganho mais notoriedade, principalmente à vista das codificações napoleônicas e em razão da importância cultural que a França assumiu no Ocidente, especialmente no fim do século XIX e começos do século XX, até antes das duas grandes guerras. Assim, a origem real do Ministério Público moderno está ligada a um momento anterior, mais precisamente quando os reis precisaram instituir tribunais para julgar seus interesses (principalmente no campo da repressão penal e no campo da defesa do erário), e então o Ministério Público não surgiu como instituição de defesa social nem como garantia de contribuintes, nem como instituição de combate à improbidade, mas sim e simplesmente como órgão destinado à defesa dos interesses do rei diante dos tribunais (“les gens du roi”). Ele era chamado “magistratura de pé” não porque, no início, defendesse o “interesse público” (como o concebemos hoje, dividido em “interesse público primário” e “secundário”), nem porque combatesse a improbidade, mas sim porque não havia a distinção completa de carreiras como temos hoje no Brasil, entre Magistratura e Ministério Público, de maneira que a carreira era uma só, a Magistratura, sendo seus membros ora postulantes (“magistrature debout”), ora judicantes (“magistrature assise”). Foi só com o tempo que o Ministério Público passou a poder deixar de defender o rei e o Estado, para passar a defender a coletividade, até mesmo contra o rei e contra o Estado. Mas essa unidade de carreiras (Magistratura e Ministério Público) continuou a existir ainda hoje em diversos países europeus, e a função de advogado do Estado ainda é acumulada pelo Ministério Público em outros países americanos, ao contrário do que ocorreu no Brasil, a partir da Constituição de 1988.
Para quem se interessar por uma análise mais aprofundada sobre o Ministério Público francês, eu recomendo o livro “Le Ministère Public entre son passé et son avenir”, de Michèle-Laure Rassat, 1967, Paris. É possível que esse livro seja encontrado nas bibliotecas das melhores Faculdades de Direito.